quarta-feira, 8 de maio de 2024

Em volta da ratoeira

Sempre me fascinou a parábola de que cada um tem dois lobos dentro de si. Temo, porém, que de dentro de mim os lobos tenham ido embora e haja agora na verdade apenas dois ratinhos. Gêmeos. Esguios. Quase insignificantes. Tão fisicamente parecidos que quem nunca vê os dois juntos jura ver sempre o mesmo.
A minha imagem mental sobre eles, porém, é muito clara, embora bidimensional: são dois. Ambos vivem numa engenhoca que se parece com uma caixa transparente dividida em duas partes iguais e retangulares, uma à esquerda e outra à direita. São casinhas organizadas de acordo com cada estilo de vida dos meus companheiros. Uma tem luxos materiais compensatórios, é cheia de caixas que vieram pelo correio e alguns dólares na gaveta. A outra tem livrinhos e fotos sobre aventuras pelas árvores, pelas cidades e pelo esgoto, garrafas de bebida, pares de tênis para ratos e meias e dúzias de plantas pequenas para dar vida ao ambiente. Mas o mistério a respeito dessas duas casas diz respeito à porta comum, que para ser acionada e aberta exige que um dos ratinhos necessariamente esteja no fundo de sua gaiolinha de material acrílico fazendo peso sobre um botão que fica, como é de se imaginar, no extremo oposto distante da porta. Distante o suficiente para que não consigam acionar e correr deslizando por uma fresta, como nos filmes de ação. De modo que a porta jamais se abre para os dois ao mesmo tempo, com isto estabelecendo uma cisão e uma necessária união harmônica entre os roedores que tanto se parecem enquanto me roem o juízo.
Todos os dias de semana pela manhã o ratinho da direita deixa o da esquerda dormindo com o peso do próprio corpo em cima do botão e sai ligeiro pela porta aberta, às vezes meio sonolento e às vezes com crises de ratiedade, para correr dentro de uma rodinha-de-rato-rodar, dessas feitas para os hamsters domesticados. Modéstia à parte, este ratinho é campeão em girar a roda o mais rápido que consegue. O que lhe deixa os ombros de rato sempre muito tensos de tanto mover as patas, ritmadas em impulso e coordenação. Como se para se manter vivo ele precisasse do movimento repetitivo de correr sempre e medindo precisamente o seu passinho de rato pequeno para não cair ou se machucar nas engrenagens desta máquina simplória. Num esforço solitário para ter alto desempenho e ser, ao mesmo tempo, compreendido - sobretudo por seu amigo, que a esta altura ainda dorme tranquilo - e admirado, embora quase ninguém entenda para que serve exatamente um rato girando uma roda que não para se cansar e morrer de fadiga.
Até que o ratinho da esquerda acorda e começa a circular impaciente pela própria casa, batendo a patinha ansioso para zanzar por aí, esperando o retorno do outro, capaz de acionar o botão para que seja libertado de sua prisão. Espera uma, duas, três, cento e vinte horas seguidas até que, impulsivo, perde a cabeça e começa a roer e arranhar as paredes pra deixar claro que quer sair. O que pode acontecer no fim do dia ou, às vezes, somente aos finais de semana. O ratinho da esquerda é boêmio, libidinoso e caótico, mas por isso mesmo muito bem humorado. Quando finalmente vê a liberdade, tarda a querer voltar para a casinha, porque sabe que o conforto de sua segurança é também uma espécie de prisão. Mas o ratinho da esquerda é solidário com seu irmão e sabe que, caso nunca mais volte para a casinha, estará condenado a ter mantido o outro em um cárcere perpétuo que além de tudo lhe privaria da repetição matinal que dá uma espécie de sentido inventado à própria vida. Por isso, mesmo absolutamente sem querer, o ratinho da esquerda se recolhe aos seus aposentos todo domingo à noite, e quando pega no sono faz questão de fazê-lo bem em cima do botão, para que na segunda cedo o da direita possa sair, se quiser, por hábito ou necessidade. E então o ratinho da direita repete o seu processo de girar a roda.
Um dia o ratinho da esquerda, que é mais lírico e inventivo, sonhou que podiam inventar um mecanismo que fizesse com que ambos dividissem momentos juntos fora de suas caixinhas geminadas. O ratinho da direita, cético que só ele, não entendeu exatamente como e por que seu parceiro teorizava sobre algo tão ousado e distante. Mas aos poucos vai se convencendo.
Desde então eles são vistos fazendo planos mirabolantes enquanto, encarcerados no tempo da porta fechada, olham para o céu dos ratos e se imaginam dançando em volta da ratoeira imaginária que desarmaram, com a barriga cheia do queijo que cuidadosamente dela removeram juntos, como se fosse uma fogueira em dia de ritual pagão. Até que suas sombras sobrepostas lhes lembrem que, caso pudessem, provavelmente viveriam em unidade. Até que se convençam que, de algum jeito, podem.

quarta-feira, 17 de abril de 2024

Status

Neste mundo de obsolescências cuidadosamente programadas, por descuido eu sucumbi a um discurso de durabilidade. Nem os amores querem mais ser sólidos, mas ainda assim eu me vali deste pretexto como quem aposta na permanência. Tatuei o contorno de uma maçã mordida sobre superfície cintilante entre os dedos, atrás dos dorsos das mãos — das duas, porque não consigo segurar o trambolho direito com uma mão só. Faço questão de deixar claro que o tamanho deste é i-gual ao do anterior. E por isso “eu não me acostumaria com um menor, sabe?”. Repito feito um papagaio culpado o discurso da vendedora, sob os veementes protestos do meu dedo mindinho, que logo reclama do excesso de carga, e por isso reclama também a mão esquerda, como sua assistente. Veja bem, não é que eu quisesse um celular da moda, pensando bem acho tão ridículo dizer “da moda” quanto desfilar por aí com um telefone desse, acho melhor dizer: de última geração, com a maior potência, a maior memória e a maior tela, e o maior preço. Não é que eu tenha me detido por tempo suficiente nesta aspiração e por isso fizesse dela um sonho ou uma grande conquista. Antes o contrário. Este seria, na verdade, um desejo genuinamente incompatível com a modéstia nos gestos e nas intenções sobre a qual se ergueu e foi guiada a minha vida inteira. Até o dia de hoje. De repente lembrei que pra mim a ostentação era só uma denúncia da imensa carência de reconhecimento de status a que às vezes estamos submetidos. Ao que se somou a compreensão de que o status só tem gosto de status se sua fórmula for seguida à risca, com quem mais pode comprando e portando os últimos lançamentos de cada coisa lançada — este que talvez seja o pacto mais silencioso da estrutura do capitalismo. E quanto a nós, felizes os que conseguirem alcançar a Deusa Elite, que tudo pode consumir, pelo menos nos detalhes mais triviais e parceláveis. Tateando estas descobertas irrefutáveis, fui traçando pra mim ao longo dos anos a rota oposta. Acho muito chique ser modesta. Menos é mais. Pretensiosa, acho que em última análise sempre quis negar o próprio poder conferido ao status que vem das coisas. Sem me dar conta que talvez um dia eu pudesse ter sem querer ostentar, nem mesmo minimamente. Sem perceber que isso pudesse virar um tipo de fardo. E talvez justo aí, neste descolamento entre a convicção e a possibilidade, que reside a minha inquietação: de quantos em quantos “eu posso, então por que não?” descerei os níveis até os confins da mediocridade estética e do mau senso? A quantos símbolos de progresso uma pessoa se rende antes de perceber que compactuou com alguns costumes de atraso? Em quantos clubes indigestos entrarei silenciosamente sem precisar apresentar credenciais só porque estou com os sapatos certos? Que papel eu tenho agora nesse teatro do qual eu costumo zombar? O que é progresso e o que é excesso? Jurei pra mim que daria um tapa em quem primeiro me perguntasse o número ou os predicados do modelo, mas não honrei a palavra porque teria dado uns três tapas em menos de vinte e quatro horas.
O fato é que comprei um iphone. Desde então venho me recusando a escrever a palavra iPhone, grafada como ordena a marca, defendendo assim o último pilar moral que me restou antes de parcelar no carnê uma BMW conversível, ou quem sabe um Jeep Renegade, este outro signo da nossa era — capaz de transitar bem entre a figura do playboy sendo pretensamente educado pelo pai, que não lhe deu um carro mais importado, e um novo-quase-rico sem muito pedigree ou demasiada ambição. Iphone, então. Porque já me basta a subversão da convicção, não me permitirei subverter também a norma culta escrevendo uma maiúscula no meio da palavra (ainda menos com esse esforço descomunal na telona com caracteres especiais totalmente embaralhados para o meu costume no acentuar e pontuar as coisas) para me referir a um telefoninho afrescalhado. Que agora é meu. Diariamente. Convive comigo. Dorme lá em casa. Então é isso: depois de me debater em vão, como um peixe prestes a morrer numa faixa de areia muito específica entre um grande bloco de areia feito das classes ascendentes e um grandioso mar de uma elite engolidora de sentidos e significados, ou, para dar mais poder às palavras, depois de amanhecer macieira tendo adormecido bananeira, sucumbi. Eis-me aqui com este aparelho novo para o qual, obsoleta, eu nunca me programei ou preparei.

Gastei alguns mil pensamentos reais para descobrir o óbvio: sou atravessada por muitas questões só por tê-lo nas mãos, mas talvez seja só um telefone.