Me vem vivo o momento em que nos entreolhamos, todos sentados no bar, a música acabada, as luzes do letreiro ainda acesas, as bolsas e os copos pela metade em cima da mesa. Foi um pouco antes de te dizermos, entrecortando o silêncio constrangedor: nós não sabemos. Ninguém quer começar a responder à tua pergunta e é porque nós não sabemos. É isso mesmo que você ouviu. Desculpe, nós não sabemos. Não sabemos exatamente quais são nossos planos de longo prazo. Lamento desapontar, estamos tão perdidas quanto você, mas cada um a seu modo, e refém (não-refém) de nossas crianças interiores e suas próprias circunstâncias — inventadas ou não, marcando-nos como elas nos marcaram.
De minha parte sempre foi assim, tu sabes. Eu não faço planos longos, a faculdade foi o último deles e sinto que não fui eu quem a sonhei pra mim. Desde então todos os planos me vêm em lampejo e de sobressalto. Até as viagens, entende? Nunca as sonhei tão de véspera para que, fazendo-as, houvesse um único e grande sonho se realizando. Houve satisfação em todas elas, é claro que houve, houve um ar fresco entrando pelos pulmões que me ensinou um punhado de coisas sobre independência e eliminar fronteiras, mas nunca houve a impressão de que aquela era uma meta importante se cumprindo. De minha parte, eu vou vivendo. Vendo no que vai dar. Remoendo — às vezes demais, com todas aquelas teorias mirabolantes que os meus vinte centavos de TCC bem feitinha e psicanálise selvagem me proporcionaram. Falando tanto, tanto. Fazendo muito pouco silêncio. Tu és igual.
Meu maior sonho, me ocorre agora, não exige tanto planejamento, só obstinação, porque é o de preservar o encantamento com as coisas boas mais pequenas e com aquelas que antes pareciam impossíveis e agora são realizáveis. É isso e saber dizer não. São coisas que eu também desejo pra ti, do fundo do meu coração, como se faz com os melhores amigos. Quanto a mim, também facilita muito nunca ter tido a ambição de morar fora: facilita me esconder sob o manto da filha única zelosa e diligente que não o faz só por isso.
Não é só por isso. Sabemos. Era sobre isso que tu querias a resposta, certo? Sobre nossas intenções de desbravar o mundo, já que ele é tão imenso? Sobre por que ainda sentimos que cabemos neste lugar minúsculo, se somos garotas grandes e tão parecidas contigo? Se sentimos algum pertencimento permanecendo aqui?
Pera, eu me sinto no Show do Milhão, só que sem os universitários. E sem as cartas. E sem a ligação para a família. Para ser franca, até sem as quatro ou cinco alternativas para eleger para chutar uma das duas mais prováveis. A vida do adulto não tem quatro ou cinco respostas, amigo. Ela tem sempre mil e uma possibilidades e suas borboletas, com efeitos que vêm muito logo depois das escolhas.
A minha resposta, então, tem de ser assim: discursiva. Deve ser um pouco mais completa. Deve passar pelo fato de que qualquer lugar do mundo vai me exigir o esforço de caber. Caber em mim. Eu sou uma casa tão confortável. Às vezes tão espaçosa. Noutras, como tu também te sentes, eu sou tão apertada que me esforço para que a ansiedade não faça vazarem partes feias de mim pelas janelas do meu corpo afora, para que não machuquem os outros.
Dessa loucura eu sei que conheces bem, o que muito provavelmente é o que fez com que sejamos tão próximos com esta América e este Brasil com S de distâncias. É isso e os sincericídios de não precisar medir as palavras porque o carinho e o afeto se pressupõem, adiantando-se, precipitados, sob o impacto de qualquer verdade dita na lata. "No fim do dia" (ou das tantas horas de voo e escalas até chegar), mesmo sendo dois chatos completos iguaizinhos à mãe da nossa amiga, nós somos mais nós. Ainda é meu o teu primeiro abraço de chegada em casa. É minha, sem precisar pedir, a tua primeira foto do carrossel logo depois das madrinhas. A gente sabe sem precisar dar corda para competições com teus outros amores.
Me perdi em divagações. Vou tentar recapitular a pergunta. Para quem sabe dar uma resposta melhor.
Eu vou ser sempre grata pelo teu olhar generoso e de admiração com os meus compromissos em ser dez com três estrelinhas, mas nem isso é pra mim exatamente um sonho ou uma realização. É antes um riscado traçado. Guardadas as diferenças entre as nossas realidades, é como se nós nunca tivéssemos tido outra opção que não suar muito para fazer a vida mudar, se quiséssemos apenas não repetir tudo. Tu sabes. Talvez um dia eu vire de volta para a estrada da mediocridade e entenda que somos todos iguais, todos especiais, todos tremendamente substituíveis. Que estamos todos no mesmo barco. Sinto que estou cada vez mais perto disso. Já sinto que é hora de remar só com a ponta para não morrer (ou endoidar) afogada de tanto tentar me definir pelo meu trabalho, mas sei que pra ti os anos de workaholic ainda me dão crédito para esta guinada. Viemos de tão perto que isso é sentido nos poros.
Alguns de nós têm vidas mais interessantes, porque se abrem mais. Tu és mais titular desse time do que eu (pega aí essa referência de futebol mesmo sem entender nada). Tu és mais desse time dos vorazes por viver abertos do que eu, mas estou aqui, no banco da reserva, te aplaudindo em nome do espírito de equipe. Te aplaudo enquanto os outros se enclausuram na mesmice do que os "outros outros" vão pensar. E eu os entendo. Não respeito, trabalho para não imitar, mas entendo, porque o interior geográfico modifica o interior da gente.
Só não mais que a sua amizade me modificou. Te juro, conviver contigo mudou tudo. Tenho isso muito claro, vou escrever em seguida para ficar marcado em brasa nessas páginas eletrônicas: sem ti, as coisas para mim seriam muito diferentes. As cercas de preconceito teriam ficado trancadas sem permitir a minha própria saída. A empatia não teria ido até o capítulo dois. Meus medos se acanharam todos diante da tua coragem.
Deve ser por isso que o teu grande sonho sempre foi chegar na maior metrópole do maior lugar do planeta que conhecemos e aí abrir bem as asas. Depois fechá-las para refletir um pouco sobre compromisso em relacionamentos ou riquezas além da conta em certas coberturas de Ipanema. O pacote da vida vem com todas as renúncias e engessamentos sim, meu amor. Várias delas, vários deles. Mas sinto (e torço que às vezes venhas a sentir também) que a gente cresce nos desafios da convivência a dois, nos pontos de contato, nas faíscas, na determinação em ter com um outro eleito para ser nosso quem sabe o mesmo respeito incondicional e dedicação gigante que nutrimos pelos amigos. Sim, vamos ter que antes dissolver as expectativas. Não dá pra ganhar todas.
Essa procura por sentido e por respostas, que eu sei que só estás sentindo por já ter sentido muito e um pouco de tudo, olhando daqui, do meu lugar de tua amiga 30+, parece fundamental para o processo de amadurecimento. Esta busca é tudo com o que podemos nos comprometer até que o sentido da vida mude outra vez. A experimentação de tanto mundo, de tanto sexo, de tantas liberdades e de tantas desigualdades sociais nos últimos tempos nunca mais vai deixar de existir para ti. Espreme bem o que sobrou desse caldo de frutas tropicais e faz um suco de aprendizado à tua maneira, como foi sempre até aqui. Bebo contigo, problematizo contigo, saio mais forte contigo.
As crianças do João e Maria acabaram de sair barulhentas para o pátio aqui na frente do escritório. Minhas janelas estão todas abertas e entrou por elas o pensamento de que nós dois seremos sempre um pouco como estas crianças. Ansiosos pela hora do recreio, para dar uns berros, soltar os bichos, ser mais nós mesmos. Neste intervalo, também cresceremos. Eventualmente, depois, voltaremos de novo para a casinha, onde haverá alguma ordem. E sempre, sempre, bons amigos. Capazes de nos provar que, só por sermos de verdade, mesmo um pouco perdidos, oscilantes e tão inquietos, nunca estaremos sós neste mundo. Voltaremos de tempos em tempos: a enlouquecer, mas também ao abraço no mercado da chegada, às comemorações na Lagoa do teu aniversário, a estarmos todos sentados no bar, a música acabada (depois de você tirar a regata e o segurança mandar pôr de novo), as luzes do letreiro ainda acesas, as bolsas e os copos — meio cheios — em cima da mesa. Nós também meio cheios das nossas perguntas que o mundo ainda não respondeu. Juntos, mesmo sem entender tudo.