sábado, 19 de outubro de 2013

Só à vista

À primeira vista era um cartão de banco azul, simples, acho que as cores faziam degradê. Não sei se era crédito ou débito, nunca precisei ouvir a pergunta. E ele quebrava o cartão o mais simetricamente possível, pra destruir as chances com certa ordem, enquanto o tempo passava. É, era um cara quebrando um cartão de banco azul enquanto eu assistia com o canto do olho. Enquanto eu era a destinatária indireta do gesto. Ou melhor, eu era o próprio cartão. Cheia de tons de azul, dígitos funcionais, um chip dourado que me tornava útil, beijos com nomes escritos em alto relevo, tão útil em tantas ocasiões, e agora estava sendo quebrada. 
À segunda vista, ele brincava de quebra-cabeça com os pedaços produzidos. Não é estranho? Ele ajeitava todos os pedaços que não pretendeu tornar disformes (mas tornou mesmo assim, no momento da ruptura) e formava a representação de um cartão completo em cima da mesinha de cor clara. Aquilo era inócuo porque aquele cartão quebrado jamais tornaria a retribuir em igualdade de condições a expectativa futura daquele homem. Porque aquele cartão, por menos rancoroso que fosse, por (morta) natureza, não guardava mais a fortuna ou a miséria de quem só fazia lhe quebrar.
À terceira, só à vista. Nem crédito, porque minha confiança na bandeira e nas reservas já se esvaía, nem débito, porque eu jamais o obrigaria a uma quitação póstuma de nossas contas recíprocas, dívidas contraídas de boa vontade. Não importava que ele guardasse os pedacinhos, emoldurasse, usasse superbonder ou durex. A lição já era mais minha do que nunca, depois de quebrar, mesmo que a fatura chegasse dias depois.
A quarta à vista, mas só na madrugada da sexta-feira eu consegui processar a operação: As chances de um relacionamento não acabam na quebra, acabam quando você não se enxerga mais no cartão quebrado. Quando você passa a desejar assinar-se desautorizadamente, sem tarjas de segurança. Porque liberdade (e, por consequência, felicidade) é não caber em um tamanho padronizado retangular azul degradê. É ser ampla demais pro formato compacto de um cartão. Quem dirá pros fragmentos desconexos de um cartão de banco azul e simples. Desapego é quando você não aceita ser, por si e pra ninguém, menos que um inteiro.

2 comentários:

Unknown disse...

;-)

Anônimo disse...

Comecei a quebrar um cartão agora - mesmo formato da época desse texto, mas joguei fora antes de brincar de quebra-cabeça - e por algum motivo lembrei da existência desse texto. Nada para acrescentar, só isso mesmo.