segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Arteira

Arte. O que eu queria fazer se ninguém pudesse me ver é arte, está respondida ousadamente a questão. Arte, porque dirigir em alta velocidade, movimentar circularmente os quadris e cozinhar algo muito gostoso é arte, porque tudo que eu gosto é ilegal, é imoral e engorda e/ou é arte.
Beber uma taça de vinho é arte, beber uma taça de vinho certo tempo depois de um porre de vinho e ainda ficar com os vincos da boca seca tintamente manchados é arte. A arte é assim, pode ser inaugural, por excelência, ou pode deixar marcas sólidas que lembrem pela cor, a textura, a sensação, o cheiro. É o que vai se reinaugurando de diferentes formas a partir da primeira experiência sem jamais se repetir. A arte é a musa arteira, sedutora e incomparável do artista. A arte não aceita ser rasa ou superficial. 
É uma puta hipocrisia dizer, por exemplo, que a arte imita a vida ou vice-versa. As duas não pretendem se confundir. Misturá-las não combina, misturá-las dá ressaca. A arte é produzida para o idealismo, para ser melhor, mais visceral, mais lírica, menos inesperada que a vida. A arte não se permite ter reflexos espelhados, a menos que eles não lhe sejam fiéis e sim um pouco distorcidos. Jamais iguais. 
Monalisa é arte. Vênus de Milo é arte. 14-Bis é arte. Tanta coisa é carregada pelo estigma. É mais acertado e anti-intuitivo estampar aqui o que não é arte. Eu tenho, por exemplo, um pelo encravado embaixo do braço esquerdo nesse exato momento, e não ouso pensar que ele seja arte. Por que falar em pelo encravado no meio de um texto sobre arte choca tanto o leitor? Porque a realidade absoluta desse pelo jamais seria traduzida em uma música, uma pintura, uma escultura ou um texto (a menos que ele fosse tão ruim e despretensioso quanto este). Mas este texto, sim, por mais fraco que seja, por menor a argúcia que contenha, é arte a partir do momento em que alguém assim o considerar.
A arte não nasce pronta, é preciso que alguém a assimile e a considere. Mas depois disso ela não anseia mais por ouvintes. Não demanda espectadores, apenas eterniza-se. A arte não é um pelo encravado que, mais tardar daqui a dois dias, depois de alguns problemas ou impasses, estará curado. A arte sugere o punho na porta, igualzinho a vida, e depois se reinventa, exigente, e passa ela mesma a exigir a visita. A arte não se presta a combater a beligerância da vida porque compreende que isso é perda de tempo. A arte só tumultua os sentidos e depois assina esse rascunho.
Ninguém assume a autoria de um pelo encravado, nem mesmo o produz ou o pendura na sala de estar, ninguém se vangloria dele ou se emociona com ele, isso é a vida. Valorizar a vida real em detrimento da irreverência da arte é uma inversão de valores. A vida é uma ferroada enquanto a picada do inseto arte não dói. Suave, mesmo letal e arrebatadora. O veneno da arte se mistura a absolutamente todos os fluidos do corpo e não se dissipa por inteiro nem com soro fisiológico em abundância. Só a arte fica, só a arte merece ser crônica. A mordida do bicho arte arrepia a nuca e não deixa hematoma. A arte é tão sutilmente marcante que não precisa que a vida lhe flagre.
Os amantes se vão e a arte fica no que foi ilegal, imoral ou engordou. No tanque vazio do veículo com o motor recém brecado depois da viagem a duzentos por hora, nos lençóis amassados, na cozinha bagunçada. Arte é descobrir a hepatite e se enxergar cada vez mais verde. A arte é o que não se deixa de lado a partir do momento em que a conhecemos, a arte nos torna iniciados nela, pretende tornar-nos incapazes de ignorá-la, substituí-la, menosprezá-la. Eu vou responder de uma vez por todas, sem tom de segredo. Se ninguém pudesse me ver eu queria fazer arte. Ou talvez só sê-la.

Um comentário:

Anônimo disse...

A arte está nas coisas mínimas, nos detalhes, algo que nos chama atenção pelo fato de ser diferente, não há como rotular se uma coisa é mais arte do que a outra, simplesmente são artes, pois está nos olhos de quem vê ou nos ouvidos de quem escuta. Assim como um luar é arte para o fotógrafo, a fotografia do luar vira arte para quem a vê, é a transmissão de sentimentos que faz a arte. Parabéns pelo texto.