terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

C de Centelha

"Como são admiráveis as pessoas que nós não conhecemos muito bem!"
(Millôr Fernandes, 1984)

Bem pra lá do meio do corredor foi que uma mão com as unhas pintadas de vermelho desfez o emaranhado de cabelos que imita um coque (mas pára sem nenhum grampo), enquanto pressenti os próprios saltos estalarem - frequentes, mas inaudíveis pelo burburinho. Parece que atrasei em forçar boniteza. Uns calouros me antecederam, aglomerados com suas roupas de domingo em plena segunda-feira, fazendo supor que o momento quando conhecemos alguém é muito importante.
Porque a faculdade é um mar sem fim de possibilidades de conhecimento. Os teóricos, é óbvio. "- Ainda bem", eu penso alto, assistindo ao quarto ano iniciar. Mas ainda mais óbvio - e o sorriso de cada neófito afoito recém-saído da adolescência-ensino-mediana anuncia - é que na faculdade a gente pode conhecer ...gente. Muita gente. É gente nova e admirável e interessante por todos os lados onde se olhe. Gente que eu também tenho conhecido, aliás. Fiz alguns bons amigos e beijei algumas poucas e boas bocas acadêmicas nesses três anos, eu talvez não os teria descoberto se o centro universitário não existisse, então o tom de zombaria que uso passa longe da repreensão. É antes a minha identidade de aprendiz de veterana no próprio aprendizado, no próprio conhecimento, semelhante a qualquer calouro.
A possibilidade de conhecer alguém ronda a todos nós, a todo instante. O atendente da farmácia, o carinha da nada prosaica balada hardcore, ou um desconhecido que, por um descuido cinematográfico, esbarra em você e pára (com 'a' acentuado) pra lhe ajudar a juntar os livros. O que a gente tarda a saber é que alguém muito legal não vai aparecer enquanto estivermos esperando ansiosamente que esses exemplos aconteçam. Ou vai. Mas aí, quando vê, já foi. É uma porção de acasos gostosos e grosseiros que, premeditados ou não, jamais poderão existir de véspera. Só se conhece alguém no exato e despreocupado instante em que, num piscar de olhos, o conhecimento já foi inaugurado. Então, quem sabe, certos estejam os calouros - preparados com antecedência pra tudo que está por vir.
Hoje eu não escrevo pra falar sobre conhecer novas pessoas, mas sim sobre reconhecer as antigas. É quando eu me lembro da Joana, por exemplo, dando um abraço que eu não esperava ganhar dias antes da minha avó falecer, em 2010. Não foi ali que conheci a Joana - eu já a conhecia há anos. Ali eu apenas a reconheci. Reconheci no sentido de conhecer novamente, de identificar uma nova e boa perspectiva. É como abrir um caderno antigo de alguém, de mais de quinze anos atrás, e descerrar facetas escondidas com a precisão de um arqueólogo.
É claro que reconhecer alguém nem sempre é bom e, como quase tudo no universo, acontece sem pedir licença. Eu já reconheci algumas pessoas - já conheci novamente, de algum jeito, depois de as conhecer - de maneiras que me entristeceram profundamente. Mas ainda assim, reconhecer alguém é guardar consigo a capacidade de se surpreender com o fato novo que o aparente conhecimento sobre alguém encobria.
E o melhor de tudo é que para reconhecer quem conhecemos nem é preciso soltar os cabelos... Ou usar a roupa de festa. Reconhecer só nos exige a atenção que sucede a desatenção com aqueles que já nos rodeiam. Re-conhecer alguém é tornar legítima, uma vez mais, a aventura aguardada de conhecer.

... e como são admiráveis (algum)as que (re)conhecemos.

Um comentário:

Viva la Vida disse...

Olha, partindo da sua linha de raciocínio/reconhecimento - brilhante por sinal - vejo que passamos mais tempo "conhecendo" pessoas do que "reconhecendo-as". Eu, por exemplo, não me lembro (de cabeça) de ter "reconhecido" alguém nesta vida... É como se eu não "conhecesse" ninguém, se é que me entendes, sahsahusa.

Nem vou te elogiar pelo novo "post", pois estarei correndo o risco de cair na mesmice... Está virando praxe - de minha parte - exacerbar sua tão natural habilidade de soar sobrenatural.

"Joana... um abraço de 'reconhecimento'". Sugestão alternativa para o título (se bem que o atual me agradou bastante também, sahusahu).

Ops! Talvez este tenha sido meu mais novo "reconhecido" jeito de te elogiar... E, se (eu) voltar à redundância é porque preciso "re-reconhecer" um jeito de te "reconhecer" (no sentido ilustre da palavra agora), certo?

Bom... "Reconheço" que continuo te "conhecendo". Talvez um dia, espero, tenha a oportunidade de te "reconhecer" (sentido filosófico-antropológico mesmo),seja qual for a surpresa que este universo de possibilidades, acadêmicas ou não, nos aguarda.

OBS: Post "conhecido" por (1) e "reconhecido" por (2).